Parece até história de distopia

março 07, 2021







Esse texto não é nenhum manifesto. Não estou dizendo que não poderia ser, só não é exatamente esse o propósito. Essa crônica é mais resultado da minha intriga, curiosidade e reflexões despertadas por duas obras.

Os dois contos que vou tratar aqui tem narrativas completamente diferentes, mas contextos muito semelhantes. Uma aura de distopia, de uma realidade social absurda que parece até distante, mas, conforme você lê, ela vai se assemelhando com o agora. Aqui quero dissertar sobre os contos “O último a sair, por favor, apague a luz e me deixe aqui”, do Matheus Peleteiro, e Quando o sol voltar, da Olívia Pilar.

Vou começar pelo primeiro, o mais "descarado" em termos de retratar o Brasil. Confesso que, quando comprei o conto, eu não fazia ideia do que ele falava. Mal reparei que há uma bandeira do Brasil na capa, não li sinopse e nem nada, mas o título me tocou e me chamou muita atenção.

“O último a sair, por favor, apague a luz e me deixe aqui” narra a história do Ufanista, uma pessoa absolutamente nacionalista, no bom sentido, que sente muito orgulho da própria pátria. Pois bem, o patriota do livro acaba por matar o presidente do país em que vivia.

Ele o fez por inúmeras razões. Por ver o ódio destilado contra grupos da sociedade, o descaso com vidas perdidas, os ataques à democracia. A gente já sabe a que contexto o autor está se referindo, ele não faz questão de esconder.

Mas o que mais ne fascina nessa obra é a sucessão de sentimentos que o Ufanista sente. O personagem está por um fio em todas as passagens do livro e o leitor consegue sentir o desespero e a iminência de uma medida drástica.

Ele passa toda a história à beira de um colapso, quanto mais o tal governante toma atitudes absurdamente cruéis, mas ele se vê impotente. Pegando um trecho da própria obra, o Ufanista “fora consumido pela desilusão. Em seguida pelo ódio e, por fim, pela solidão”.

Como escritora, uma das coisas que mais gosto é esse processo de descrever a sucessão de sentimentos. Acho que o autor faz isso muito bem, porque você fica nervoso pensando “é agora”. Quanto mais demora a acontecer, mais você fica curioso.

Acho que usei muito essa conjunção proporcional “quanto mais” porque, de fato, são sobreposições de absurdos. Não foi o Matheus que criou essas situações absurdas, mas ele pega uma seleção dos melhores, na verdade dos piores momentos, e constrói uma narrativa envolvente. Você já sabe o que vai acontecer no final, não é uma surpresa, só não sabe ainda como e o porquê.

A outra obra eu conheci pela autora e acompanhei o período de lançamento. Na época em que resolvi voltar a escrever (aqui uso escrita no sentido literário, já que produzo o tempo todo na minha profissão), fui em busca de novos autores brasileiros. Um dos primeiros achados, e dos mais especiais, foi a Olívia.

Só para contextualizar, a Olívia é jornalista e estuda representatividade. Isso transparece nas obras da autora que diz escrever “clichês”, mas clichês de mulheres negras se amando, o que não é exatamente um clichê dado que essa parcela de pessoas não são comumente representadas.

“Quando o sol voltar” é o conto mais recente da escritora e fala sobre o amor em uma sociedade distópica, mas nem tanto, né. Na história, Bruna e Dara, e outras tantas pessoas negras, LGBTs, indígenas foram atacadas, desaparecidas e atormentas pelo ódio e preconceito dessa sociedade preconceituosa.

Não que essa discriminação já não existisse, muito pelo contrário. Mas agora isso não era mais velado, ou politicamente incorreto e as pessoas nem mesmo tentavam disfarçar. O ódio fora totalmente normalizado.

Não houve uma lei, um decreto ou nada “concreto” que dissesse ser crime o casamento entre pessoas do mesmo gênero ou institucionalizasse esse ódio. Tudo estava no imaginário das pessoas.

E o sentimento aqui era de medo e culpa. Medo de ser quem é, de não poder viver em paz e culpa por achar que você está praticando um crime. A luta vai dando lugar ao sentimento de impotência e a esperança é um sentimento ainda aceso, mas voltado para um futuro distante.

Aqui existe um envolvimento muito mais pessoal do que na obra anterior. O Ufanista está indignado com os discursos de ódio, mas não se sabe até que ponto ele é diretamente afetado. Não sei a sexualidade dele, a raça, ele é tomado por esse sentimento por não aguentar ver a pátria amada nessa situação.

Em “Quando o sol voltar” não. Olívia traz o amor não só pelo país ou pelo próximo, é o amor pela própria identidade, o amor romântico, o amor familiar e (por que não?) o amor pelo próprio amor.

As duas obras se entrelaçam pela revolta de uma sociedade real. A aura de distopia paira nos elementos de ficção, mas o contexto é bem próximo. Seja pelo sentimento de valorização da cultura ou pela luta pela própria identidade, os dois contos convidam a refletir e tocam profundamente, de diferentes maneiras, os sentimentos do leitor.

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