Disritmia compulsiva

junho 27, 2021

 

À primeira vista era uma menina muito bonita, atraía alguns olhares desconhecidos e até piscadelas sutis, mas isso até tomarem ciência do que ela realmente era: uma completa estranha.


Mas não qualquer estranha, estranha com título de estranheza, até criara suas próprias leis, daquelas que não são promulgadas, mas que era seguidas a fio, ao pé da letra de uma maneira quase que involuntária, leis cruciais para o ingresso na “Facção da Estranheza” (na qual era a chefe, já que só havia mesmo ela como membro).


Ela até tentava se controlar, mas a sua falta de destreza (maior aspecto da sua estranhice) falava mais alto. As vezes pensava em mudar à todo custo, mas não seria essa “estranheza” a peça chave da sua personalidade? Será que, a perdendo, não estaria também perdendo a si mesma?


Entre fatos e relatos passavam-se horas com ela contando suas histórias, aventuras, desastres. Se não fosse sua estranhice, que histórias terias para contar?


Reuniões em família eram o seu pior pesadelo. Sempre havia algum deslize para provocar risadinhas e comentários como “coisas de fulano” ou “só sendo tu mesmo”. Sua contribuição para festas familiares era sempre na área da comédia, mas só ela não achava graça.


Quando conhecia alguém novo era uma alegria só. Era a oportunidade de causar uma boa primeira impressão. Poderia dar uma de culta (não que fosse burra, pelo contrário, mas seu desajeito a fazia falar coisas sem sentido), poderia se fazer de meiga e tímida, poderia até bancar a que “não se mistura”, a reservada ou metida, só para não deixar sua estranheza se manifestar e estragar tudo outra vez.


Na dúvida, preferia ficar calada, e foi o que fez. Começou a tentar se passar por uma adolescente dita como „normal‟ e procurar seguir requisitos dessa sua nova Facção, entre eles estavam: ficar olhando o celular nas reuniões de família (só pra parecer que tinha algo interessante, mas na verdade estava jogando algum joguinho chato) ao invés de falar suas histórias, responder as pessoas de forma mais direta, ficar longe de qualquer objeto quebrável, não aceitar fazer trabalhos manuais (era até responsável, mas seu desastre, como sempre...) e o mais importante, nunca tentar comandar ou ordenar nada do tipo, pois, por seu jeito atrapalhado, sempre alguém que a fazia parecer ridícula.


E assim foi se perdendo... Perdendo seu jeito, sua essência e se misturando na massa da multidão cinzenta que de diferente só tinha suas ambições e suas definições de pecado.


De vez em quando a sua estranheza se manifestava numa espécie de disritmia compulsiva, mas, como não buscava se envolver intimamente com ninguém, não era desbravada em seu mundo de desastres e nunca conhecida a fundo em suas estranhices. E dessa forma foi mascarando as características da “Facção estranha”, mas sem conseguir adentrar na “ Facção normal”. Não era mas aquela com título de estranheza e tudo, pouco se sabia sobre ela, mas quando perguntavam quem era sempre respondiam: “ah, é só mais uma estranha”...

0 comentários