Solidões

maio 26, 2022

 


Sunday (1926), Edward Hopper


Sentado na calçada, mil histórias se passam pela minha cabeça como flashes. Lembranças de quando eu era simples e unicamente eu. Sem máscaras, montagens, adornos. Acho que me envaideci, saí do chão e me aventurei em um salto no meio do nada.

Desde criança eu sempre fui assim: excêntrico, inquieto e talvez um pouco doido. Vindo de uma família modesta, acredito mesmo que eu sempre quis me engrandecer.

Quando era menor e minha mãe me levava ao circo, era um espetáculo para os meus olhos. Artistas dançavam, saltavam, pareciam pairar no ar. Eu observava boquiaberto aquele intenso festival de cores. Tinha se tornado o meu sonho sair daquela cidade sem causas para me aventurar pela arte.

Meu pai tinha uma banca de esquina, da qual queria que eu tomasse conta, e eu obviamente negava. Ia mal na escola, nunca fui seu maior orgulho. Meus primos passaram em primeiro lugar em alguma faculdade por aí, irmãos estudando, casados, com filhos. Eu, com 17 anos e incompreendido.

Era mês de setembro e os artistas apareceram para colorir a cidade. Ninguém entendia meu fascínio pelo circo e, para ser sincero, nem eu. Lá conheci quem viria a ser meu encanto e minha confusão.

Ela se chamava Helena, fazia parte da organização e dizia acreditar no meu talento. Eu ia ao espetáculo todos os dias para vê-la e, claro, para assistir àquele show que eu tanto adorava. Aos poucos eu ia adentrando naquele ambiente. Ficava até mais tarde, via os ensaios e depois de um tempo acabei participando também. Um dia me produzi. De rosto pintado e trajes extravagantes eu parecia assumir uma nova identidade. E eu gostei.

Com a maquiagem mal tirada cheguei em minha casa tarde da noite. Em silêncio, percebi que alguém me esperava. Acendi a luz e vi meu pai, sentado no sofá, com um olhar confuso. Sorri para ele e contei: a euforia que eu senti em me fantasiar e interpretar um personagem, o potencial que eu acreditava ter para seguir esse novo sonho.

Lembro-me de sua expressão perfeitamente. Por alguns segundos, deu um meio sorriso pensando se deveria rir ou não. Depois, um semblante incrédulo e enraivecido tomou conta de seu rosto. Aos gritos, reprovou meu plano de vida “miserável” de ser palhaço de circo. Chorando e com ódio, meus argumentos de defesa só prolongaram uma discussão terrível que acordou minha mãe, assustada. Tentando acalmar meu pai, ela pediu que eu fosse para cama dormir.

Eu mal conseguia fechar os olhos. Estava incrédulo com a reação de meu pai. Como era possível ele não apoiar seu filho na primeira coisa que fizera bem na vida? Algo que me deixou tão esperançoso e feliz? Lembrei de Helena. O sorriso admirado que ela dava quando me olhava nos ensaios. O incentivo sincero e a alegria que ela me fornecia. Ela sim enxergava meu talento. Ela entendia o que era ser artista.

Sem pensar duas vezes, levantei-me e coloquei algumas roupas na mochila. Peguei todo o dinheiro que encontrei em minhas gavetas e fugi de casa. Olhei para a banca do meu pai e senti raiva ao pensar em trabalhar ali pelo resto da vida. Virei a cara e segui em frente. Ainda era madrugada e as ruas frias estavam desertas, éramos apenas eu e meu sonho.

Cheguei perto do circo e vi que estavam colocando as coisas dentro de um enorme caminhão: iam para a próxima cidade em algumas horas.

Nervoso, pensei em voltar para casa, mas avistei Helena e os outros artistas. Ao me verem, pularam entusiasmados perguntando se eu iria viajar também. Uma adrenalina tomou conta do meu peito. Respirei fundo e embarquei na maior loucura de minha vida.

A aventura começou bem. Visitei lugares que nunca havia ido, conheci histórias e talentos maravilhosos e aprendi a ser um palhaço realmente bom. Tão bom que despertei inveja nos outros artistas. Pelo meu sucesso precoce, alguns dos meus colegas me provocavam, tratavam-me com desprezo e diziam que eu era apenas um novato exibido. Os ensaios passaram a ser desagradáveis, sentia um clima ruim nos camarins e perdi o prazer de estar naquele ambiente.

Foi quando Helena percebeu o que estava acontecendo e veio falar comigo. Ela contou ter brigado com os outros integrantes, que nunca gostou deles e que tinha planos para mim. Juntos, procuramos por outros circos, fizemos participações especiais e construímos uma carreira solo para mim. Ela convencia todos os donos de espetáculos de que eu cativava o público com meu carisma e bom humor. Pelas cidades, cartazes com meu rosto eram espalhados, e os circos passaram a usar minha presença como atração principal nos shows. Foram anos de sucesso e de muita realização.

Até que um dia meu coração congelou. No fim de uma apresentação, eu estava tirando fotos com as crianças e vi na fila um garoto de mãos dadas com sua mãe. Ao se aproximar, ele sorriu e disse:

- Quando eu crescer vou ser um palhaço igual a você!

Não aguentei a tristeza que tomou conta de mim. Todos os sorrisos que eu tirava do rosto daquelas pessoas, todas as famílias que vinham me assistir, tudo me fez pensar na vida que eu deixei para trás. Lembrei do garoto que eu era, indo ao circo com minha mãe e desabei em lágrimas. Nesse tempo todo, nunca pensei em como ficaram os pais que eu abandonei sem dar uma notícia sequer. Conversei com Helena, agradeci com emoção e me despedi.

Decidi voltar ao que era antes. As maquiagens, brilhos e adereços não me cabiam mais. Tirei toda a fantasia, lavei o rosto e voltei a ser eu. Quem eu era antes de assumir a identidade do artista. A identidade que me foi amiga e companheira por muito tempo, com a qual eu tanto aprendi e vivi momentos bons. Agora havia chegado a hora de me reinventar.

E enfim estou eu no cenário onde tudo começou, ou terminou. Sentado na calçada, a banca do meu pai atrás de mim não abriu hoje. Tem vidros nas janelas e é de uma madeira esverdeada. Nunca tirei aquele cenário da minha cabeça. Quando o fitei pela última vez era madrugada e eu estava dando adeus àquele lugar. Agora, no reencontro, ele parece ter algo de especial: saudade.

A rua está vazia, já estou ficando preocupado quando passa um senhor de chapéu coco.

- Senhor – pergunto - você sabe se dona Heloísa ainda mora aqui?

- Dona Heloísa? - ele fala - ah sim. A ‘mãe do artista’, não é?

- Como?

- Há anos ela fala que tem um filho famoso. Vê ele na televisão às vezes, coleciona fotos. Fala pra todo mundo que o filho é um palhaço muito reconhecido, mas esse filho nunca veio aqui. Ela disse que ele foi embora brigado e se contenta com as lembranças que coleciona dele. Só que ultimamente ela anda cabisbaixa.

- Por que?

- Disse que o filho sumiu da imprensa, está toda angustiada sem saber dele.

- E o pai dele?

- Ele é mais contido, mas todo mundo sabe que ele assiste toda vez que o filho aparece. Uma vez ele contou que se pudesse teria apoiado ele enquanto era tempo.

- Brigar com a família é algo que dá um aperto no peito.

- Verdade, espero que ele um dia volte.

- Vai sim, tenho certeza. – sorrio e o senhor vai embora.

Penso nesses anos todos que passei fora. Talvez se eu e meu pai tivéssemos aceitado nossas diferenças nada disso teria acontecido. Mas sabe, experiências como essas às vezes são necessárias para aprender. E para ganhar coragem.

Enfim tomo um impulso e bato na porta de minha antiga casa. Estou disposto a pedir desculpas, ouvir palavras duras. Tenho medo da reação deles.

E então a porta abre. Vejo uma casa diferente, colorida, com vários posters meus e avisto um homem sentado em uma poltrona tomando café: é meu pai. Ele levanta a taça como em cumprimento e dá um largo sorriso. Minha mãe abriu a porta. Fica paralisada por uns instantes e em seguida me fita profundamente com os olhos úmidos. Espero uma reclamação, algo como “por que você sumiu esse tempo todo?”, mas em vez disso o que ouço é:

- Que bom que você chegou, acabei de fazer o café. – ela me abraça forte e entramos.



Texto por Aline Rossi e Gabriella Castro
 





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