A primeira chuva

novembro 13, 2022



Meu pai diz que desde bebê colocava a gente para tomar banho na chuva. Não sei se isso é literal ou uma hipérbole, ele sempre foi meio exagerado.

O fato é que cresci correndo no meio da chuva, nas ruas de calçamento, na areia, na lama, no asfalto. Inventando brincadeiras novas, avaliando qual casa tinha a melhor bica para tomar banho, mapeando os lugares por onde passávamos, fazendo brincadeiras e descobertas. A chuva pra nós sempre foi muito além do senso comum.

Na primeira chuva não se pode banhar. Todo mundo sabe disso, mas nem sempre a gente respeita porque a empolgação é grande. Ela vem para lavar o telhado, escorrer todas as folhas da calha, tirar a sujeira acumulada. Não se pode juntar água da primeira chuva nas caixas d’água, caldeirões e cisternas, ela de nada serve a não ser para elevar os ânimos de quem espera a temporada chuvosa ansiosamente.

Mas hoje eu banhei na primeira chuva. Talvez eu tenha me sujado mais do que me lavado, mas não me arrependo. Fazia muito tempo que não criava coragem para banhar de chuva.

Chuva boa para se molhar é aquela que cai de dia, no escuro num presta não. Tenho medo. Não pode ser fraca demais ou nem vai se molhar direito. Também não pode ser forte demais, os pingos machucam. E o mais importante: não pode ser cheia de trovoadas.

Um dos motivos pelos quais eu nunca mais tinha banhado na chuva é que tenho muito medo de raio, trovão e relâmpago. E é engraçado que, ao longo dos anos, esse medo aumentou. Quando criança eu me assustava, voltava para casa e evitava chuvas fortes. Hoje em dia, qualquer sinal de chuva que passe de uma garoa eu já me escondo.

Mas hoje eu banhei na chuva. Foi bom.

Às vezes fotografo momentos de uma forma meio “conceitual”. Fotografo os animais no terreiro da minha vó, gente fofocando na calçada... e fotografo a chuva. Algumas vezes me sinto ridícula por isso. Não sei se estou apenas registrando momentos que têm significado para mim, ou se estou olhando o que era meu cotidiano de fora com o olhar de quem fotografa uma outra cultura com superioridade.

Talvez eu esteja virando uma forasteira em minhas próprias terras, por isso tenho vivido experiências banais, como ir ao centro e sentar na calçada, intensamente. E por isso a necessidade de fotografar tudo. Tenho medo de não ter registros o suficiente para me lembrar de quem sou.

Mas hoje eu não fotografei a chuva. Talvez fotografe as chuvas seguintes. Mas a primeira, aquela que arrasta as folhas das calhas e cuja a água não pode ser aproveitada, ficou só na memória mesmo.

Hoje eu banhei na chuva. Sem registros e sem medo.

Apenas deixei que os pingos escorressem pelo cabelo como escorre o tempo.



(Texto escrito em 25/10/2022)

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