Fragmentos

março 25, 2021

 

Ilustração de Tomasz Woźniakowski / Behance

“Querido diário”: ela escreveu numa página em branco no computador porque achou que seria a uma boa ideia começar o texto assim. Não sabia se era de fato um diário, mas estava disposta a tentar fazer aquilo dar certo de certa forma.

Acendeu um incenso, fechou a porta e deixou com que o perfume de alecrim entrasse por suas narinas enquanto revia as reclamações do dia.

Estou exausta, acho que essa é a palavra: exaustão. Farta de conviver com personalidades que não se complementam e mal coexistem no ambiente em que estou inserida.

Hoje rolou uma bela de uma discussão no trabalho. Não exatamente uma discussão, para isso é preciso dar a cara à tapa e dizer o que incomoda, não foi isso que aconteceu. O que acontece é que todos ali estão amedrontados e inseguros demais para fazer e dizer o que realmente querem.

Então tudo que fizeram foi atrapalhar os planos um do outro, como se não fossem dignos de importância. De maneira mesquinha, prepotente e até sonsa. Sabotaram, enrolaram, fingiram estar ajudando só para atrasar por conta da sua inutilidade.

E não foi nem o primeiro e único conflito que está atormentando meu juízo.

Pelo que posso observar todo mundo ali tem uma insegurança, uma questão do passado, uma raiva nunca compartilhada, um “sei lá o quê” gerado por um trauma de infância que nunca foi trabalhado e agora não querem abrir mão de nada.

Acho que deve ser egoísmo, tensão. “Eu sofri mais que você, então eu mereço estar aqui mais que você também”. E então ninguém se permite se adaptar, ser flexível.

E o pior, críticas não são aceitas. É impressionante o quanto qualquer correção é levada para o lado pessoal, como se todos ali precisassem de validação (e creio que de fato precisam).

Chega a ser engraçada a situação. As vezes alguém começa a rir, como fizeram hoje. De nervoso, uma pessoa (não irei dar nome às pessoas, aqui prezo pelo anonimato) começou uma gargalhada escandalosa que ecoou por todo o ambiente. Os outros repreendiam em seus próprios pensamentos e em alguns olhares. Mas ninguém sabia exatamente como reagir.

A risada foi ficando mais e mais constrangedora até que o esquisito do local começou a sentir vergonha de si e abaixou a cabeça resistindo bravamente até conseguir aniquilar aquela gargalhada que subia pela garganta para se espalhar pela sala. Levantou-se da cadeira, ainda olhando para baixo, e saiu quase que escondida na esperança de que ninguém lembrasse mais do ocorrido após um tempo.

É uma situação insalubre para se estar e assistir. Mas sinceramente, não penso em fazer nada quanto a isso a não ser desabafar aqui, afinal, não cabe a mim resolver o problema dos outros.

Ela fechou o arquivo, mas não sem antes salvá-lo na pasta onde guardava todos os contos autorais.

Olhou para a agenda de tarefas e pensou se era mesmo aquilo que ela queria estar fazendo. Leu as mensagens do celular, mensagens de desculpas que nem precisavam ser pedidas e analisou como havia construído suas relações. Vagou os pensamentos pela vida social, amorosa, familiar e pensou: “deixa isso para outra hora, não tenho como fazer nada”.

Não havia trabalho nenhum, apenas uns freelas mal remunerados aqui e ali de produtos que ela nem sequer gostava de produzir. Portanto, também é notável que não existia nenhum ambiente físico insalubre para se referir.

Não existia nada. Nem ninguém. Apenas ela e seus pensamentos confusos, egoístas, mesquinhos e aflitos. O personagem querendo observar de longe.

Como ela adorava atribuir seus fragmentos a personagens fictícios para se desvincular de si.

6 comentários

  1. Mds perfeito demais!!! Já quero maaais😍😍😍

    ResponderExcluir
  2. Aii Gabi eu amei ♥️ Literalmente é um texto visível, eu enxergo perfeitamente isso que ta escrito!

    ResponderExcluir
  3. Muito bom! Faz mais contos desses plss. Gostei muito

    ResponderExcluir
  4. Consegui me enxergar em alguns momentos do conto. Por favor escreva mais!

    ResponderExcluir