A máquina

julho 28, 2021

 

Abriu o computador, começou a tentar desenhar algo que faça sentido. Ultimamente, fazer sentido era seu maior desafio. Tudo parecia tão confuso e sem nexo, como extrair sentido das coisas enquanto elas pareciam ter se esgotado?
 

As mãos apoiadas no queixo, a caneca de café ao lado, um incenso de camomila recém aceso, a gata deitada sobre a cama. Era uma tarde linda, não acham?
 

Sim, de fato era, mas não podia se dar ao luxo de aproveitar enquanto seus compromissos estavam ali bem na sua frente. Não era trabalho, não era estudo, não era nem sequer algum compromisso com alguém. Era mais grave ainda: um compromisso com si mesma. Se falhasse, sentiria que estava jogando sua vida fora.
 

A ligação com a arte era o que a motivava diariamente. Porém, consumida pelo cotidiano, não encontrava tempo e nem inspiração. Quanto mais se organizava, menos coisa saía.
 

Talvez se saísse, visse pessoas e lugares, sua inspiração poderia voltar. Bebeu o último gole de café, fechou o computador, o incenso ficou aceso, e saiu. Cumprimentou pessoas nas calçadas.
A vida delas parecia tão comum? Precisava ela do comum ou do extraordinário para suas obras?
 

Ela não sabia.
 

Havia algo branco longe no asfalto. Seria uma sacola ou um gato atropelado na estrada? "Sacola. Sacola. Sacola. Sacola." Cruzou os dedos.
 

Se deparou com o cheiro podre que ficava mais forte quanto mais chegava perto. Obviamente não era uma sacola. O odor pútrido da morte não superava a podridão de quem havia feito. Para ela não.
 

Não conseguiria ficar por ali. Não conseguiria esquecer a cena, mas não seria isso que a ajudaria na sua arte. Voltou para casa com a lembrança, o nojo e o ódio.
 

Mais uma caneca cheia de café, um incenso agora de sândalo, queria animação para conseguir terminar o que nem havia começado.
 

Já tinha começado a escurecer e o dia não estava mais tão bonito assim. Abriu a geladeira, fez um lanche e pensou: "não é possível que eu não consiga fazer nada hoje".
 

Não tinha feito nada. Na verdade tinha. Algumas aulas meio distraídas, um trabalho mais mecânico que estava enrolando, um almoço bem mais ou menos. Estava desconsiderando todo o esforço que fez para fazer tudo mesmo que malfeito.
 

"Eu preciso cumprir o meu compromisso, não vou me perdoar se não cumprir", pensou. E não se perdoaria mesmo.
 

Encarou a tela do notebook por um... dois... três... quatro minutos. Até ver que a luz azul da tela fazia com que ela não conseguisse enxergar mais nada.
 

"Um papel", pensou. Voltar para as origens sempre pode ser uma maneira de recomeçar. Havia tantas memórias boas dos desenhos no caderno, talvez isso pudesse trazer de volta a inspiração.
Abriu o caderno, pegou a coleção de lápis. Rabiscou algo. Que diabos era aquilo? Nada que fizesse sentido. Passou para outra página. Mas que merda era aquela que estava tentando fazer?
 

A quarta xícara de café do dia começava a fazer o efeito que se esperava, o incenso de sândalo, escolhido para dar alegria, fazia a cabeça dela latejar.


O coração acelerava enquanto fazia começos sem sentido para desenhos nunca decifrados. Começou a arrancar as páginas tem piedade enquanto pensava no que fazer.


Sua aversão passava para desenhos antigos feitos com grande precisão técnica que eram arrancados como se para afastar uma memória ruim.


O coração acelerava, a cabeça latejava.


De repente, se desprendeu de tudo que fizesse sentido. O caderno com folhas agora escassas começava a ser rabiscado. Primeiro, os desenhos já feitos, que então foram coloridos como faria uma criança.
 

Depois, as páginas em branco. Rabiscou, ou melhor, golpeou a página com a brutalidade que tomou conta de si sem mais nem menos. Rabiscos sem sentido, fortes e coloridos.
 

Rabiscou a página descompensada. Cores fora da paleta, tudo sem precisão alguma.
 

A cabeça latejava, o coração estava acelerado. Golpeou, golpeou e golpeou mais um pouco. Golpeou até cansar da página e sentir que estava no ápice e precisava controlar o seu coração.
Derrubou o caderno no chão sem nenhum cuidado. A página aberta mostrava o desenho recém acabado. 

Olhou para a página de rabisco mal feitos. Algo ali lhe chamava tanto a atenção que não conseguia desgrudar os olhos. Fitou a obra de traços fortes e cores intensas. Fitou até entender. Seu coração desacelerou um pouco enquanto contemplava a representação do surto.
 

Ali estava a sua arte.



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